Hannah e Maria, o Zelo
e a Observância da Lei
O primeiro pensamento de um judeu ao
despertar pertence a Deus. O mesmo se dava também na casa de Hannah. Logo após
o primeiro cantar do galo, mãe e filha saíam de seus quartos, lavavam a boca, o
rosto e as mãos e, juntas, faziam a oração matinal. Depois as duas iam
sentar-se à mesa para a leitura das Escrituras. A mãe sentava-se no lugar
antigamente ocupado pelo marido. Hannah retirava um pergaminho da arca e lia o
primeiro capítulo do livro de Rute que era, aliás, a sua leitura predileta. Rute
era sua parenta e, como o próprio grande Rei, era o orgulho de todos os que se
consideravam descendentes da casa de Davi.
Aliás, Rute era a heroína de todas as mulheres da
família que descendiam do rei Davi, as quais liam e reliam reverentemente o
livro que mencionava o nome daquela moabita, pois ela surgira de uma família
estrangeira e, mesmo assim, conseguira alcançar, graças à sua lealdade, o mais
alto privilégio a que uma mãe em Israel podia aspirar, o de ser a matriarca da
linhagem real e candidata a fazer parte da genealogia do Messias.
Depois de ler o primeiro capítulo, as duas
mulheres recitavam o Sh’ma Yisroel
(“Escuta, ó Israel”). É verdade que a lei não exigia a observância de tal
prática por parte do sexo feminino, mas as mulheres devotas continuavam a fazer
suas orações, sem que os mestres da lei procurassem impedi-las. Somente depois
de findas as orações é que mãe e filha se entregavam às tarefas caseiras. A primeira
delas, em um lar judeu, era dar alimento e água aos animais. Nenhum judeu devia
fazer sua refeição matinal sem primeiro matar a fome de seus animais. Assim,
enquanto a mãe preparava o desjejum no interior da casa, a filha ia cuidar do
rebanho.
A cerra//ção que caíra de madrugada começava
a levantar-se, à semelhança de um véu flutuante que ia se esgarçando acima dos
tetos e das árvores. Gotas de orvalho cintilavam em cada folha e em cada pétala
de rosa. A jovem ficou com os pés completamente úmidos. Pequeninas pérolas
começaram a pontilhar-lhe as lindas mechas negras de cabelos que haviam
escapado do pano que ela amarrara à cabeça. A aragem da manhã bafejou-lhe o
colo que a túnica deixara a descoberto. Ela, porém, não sentiu o frio nem a
umidade que lhe vieram ao encontro. Sua mente e seu coração estavam
inteiramente absorvidos pelas imagens que a leitura da mãe lhe despertara – imagens
das palavras hebraicas traduzidas para ela no dialeto aramaico e relacionadas
com a história da volta de Noemi e suas duas noras para Belém.
Tinha-a ouvido muitas vezes, e sempre lhe parecia
nova. Viu-se na estrada de Belém com Noemi e Rute, e ouviu a voz desta dizer à
sogra: “Não me instes para que te deixe e me afaste de ti; porque, aonde quer
que tu fores, irei eu e, onde quer que pousares à noite, ali pousarei eu; o teu
povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus” (Rute 1.16). Como eram misteriosos os
planos do Senhor! Ele escolhera uma estrangeira pertencente a um povo estranho,
que servia a um deus que não era o Deus de Israel. Rute se tornara uma das mães
do judaísmo, como havia sido Sara e Rebeca. Ela parecia até com a própria
Raquel.
Fora-lhe concedida a graça de entrar na
linhagem do Messias (Mateus 1.5). Não era essa a prova de que o Messias-Rei
viria para todos os seres humanos e todas as nações, uma vez que todos eram
filhos do Senhor? Não foi isso que disseram os patriarcas e profetas? (Gênesis
49.10; Salmos 72.11,12,17). Mulheres como a estrangeira Rute foram incluídas
como parentes muito anteriores do Messias a fim de que todas as nações pudessem
ter uma parcela nessa herança: a de receber a bênção do rei Messias, o
descendente da Casa de Davi.
A jovem encaminhou-se para o aprisco. Os
carneiros a esperavam, os ouvidos atentos ao ruído de seus passos. Todos
estendiam o focinho em sua direção, aproximavam-se, esfregavam-se no corpo da
moça, dando-lhe e recebendo carinho. Lambiam-lhe as mãos, e a cada um que dela
se acercava em busca de carícias, Maria dizia-lhe o nome. A um afagava-lhe as orelhas
e chamava-o de “Luar”, a outro lhe dava a mão para que ele lambesse. Um abaixava
a cabeça para que Maria lhe acariciasse o focinho, outro bafejava-lhe.
Depois dessa recepção do rebanho de carneiros à
sua dona, Maria pegava no colo os que ainda eram pequeninos, mimava-os,
partilhava do calor que vinha de seus corpos tenros e mergulhava os dedos em
sua lã felpuda. Estremecia ao sentir nos braços e no colo a pulsação da vida daqueles
animaizinhos como se percebesse o destino de todos os que estavam indicados
para o sacrifício a Deus.
Maria abriu o aprisco e conduziu os
animais ao bebedouro. Lá deixou que a água da cisterna corresse e enchesse o
coche. O jumento foi o último a chegar. Aguardara resignadamente a sua vez de
ser acariciado. Maria passou a mão pelo seu pescoço, e ele retribuiu a carícia
com um pequeno zurro de satisfação. A jovem levou-o depois para o bebedouro e,
em seguida, jogou-lhe um feixe de feno.
A terra secara sob os seus pés enquanto
ela voltava para casa. O sol iluminava todo o céu, e seus raios, à semelhança
de línguas sedentas, beberam o orvalho da relva e das árvores, e secaram a
umidade dos cabelos e dos pés e braços nus da jovem. A alegre claridade brincava
com o azul desbotado de sua túnica. Cercava-a uma trêmula névoa de luz que aumentava
o brilho dos seus cabelos negros, e acentuava o azul das pequeninas veias sob a
sua pele branca. Aquele beijo do sol agitou-lhe o sangue e levou-lhe ao rosto um
rubor. Maria baixou a cabeça e cobriu os olhos com as mãos.
(Continua amanhã)
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