CAPÍTULO V
FUGIA ÀS BOAS NORMAS observadas pelos
judeus os noivos mostrarem-se juntos mais vezes do que o necessário. O bom-tom
ditava, até mesmo para os casados, certa restrição à frequência de seus
aparecimentos em público. José instalara-se, por isso, na casa de seu parente
Reb Elimelech, onde iria passar os meses que ainda o separavam de seu
casamento. Ia durante o dia às carpintarias da cidade, para as quais trabalhava
como jornaleiro. À tarde, terminado o serviço, visitava a noiva e ajudava-a na
horta ou no jardim, ou então preparava a sua oficina de carpinteiro na casa da
viúva onde iria viver depois do casamento. Havia, pois, poucos momentos para
uma comunhão mais íntima com a noiva.
Somente aos sábados e dias de festas é que
se quebrava a regra. José passava o dia todo na casa de Maria e, às vezes,
ficava alguns ligeiros momentos a sós com a jovem, justamente quando saíam para
cuidar das plantações – quando Maria lhe mostrava, cheia de orgulho, as suas
hortaliças, as umbelas brancas e amarelas dos endros, ou quando, por breves
instantes, observavam o pequeno rebanho de carneiros que, à volta do pátio,
aguardavam o momento de comer no cocho. Disse-lhe José, numa dessas ocasiões,
sem ousar olhar para ela:
— Se for do agrado de Deus, poderemos construir
juntos a nossa casa, e tu, Maria, haverás de participar de tudo com que Deus me
favorecer. Tua boca ditará as ordens em minha casa e tua mão é que a
sustentará, pois a verdade é que Deus me deu, como esposa, uma mulher de valor.
Maria sentiu as faces arderem. Abaixou a
cabeça e não respondeu.
Uma noite, depois de passadas as
celebrações do sábado, estava ele sentado a seu lado na casa da viúva. A luz
bruxuleante de uma lamparina mal os alcançava. A viúva Hannah se achava na
despensa, na extremidade oposta da sala, arrumando uns queijos e frutas secas
que fora buscar na parte superior da casa para vendê-los no dia seguinte na
grande cidade de Sepphoris.
Os preparativos para o casamento da filha
exigiam muitos recursos. Tinha-se que reservar grande quantidade de vinhos,
embora se contasse, para isso, com o auxílio do noivo. Mas o que dizer do óleo,
do azeite, das frutas secas, dos pães e da carne de galinha que se comia em um
casamento com tão grande número de convidados? Seria uma carga pesada para a
viúva, razão por que começara a preparar as provisões. Para isto, vendia as
sobras de frutas, hortaliças e lacticínios nos mercados das cidades vizinhas.
Seus problemas não eram apenas de ordem
financeira. Mesmo descendendo de um sacerdote, nunca pudera entender a
engrenagem da lei no tocante ao pagamento do dízimo. Não sabia se tinha ou não
de pagar o dízimo dos levitas sobre as hortelãs e as uvas, se precisava pagá-lo
também sobre as alcachofras e os preciosos aspargos. Perguntava a si mesma como
poderia guardar tudo aquilo na cabeça, se muitos frutos e hortaliças davam em
estações diferentes. E assim aguardava a vinda de Hanina ben Safra, o sacerdote
da cidade. Pelas marcas anteriores, ele poderia dizer-lhe quais os produtos
ainda sujeitos ao pagamento do dízimo.
Ele não demorou muito tempo a chegar. Logo
ela ouviu os seus passos pesados e viu, através das fendas da ombreira da porta,
a luz de sua lâmpada. Hanina bateu impacientemente com a vara na soleira, pois
dispunha de pouco tempo. Tinha de visitar naquela mesma noite muitos outros
aldeões nazarenos a fim de dizer-lhes quais de suas colheitas podiam ser levadas
com segurança ao mercado, e quais as que estavam ainda para ser tributadas.
Hannah apressou-se a recebê-lo, deixando José e a filha a sós.
José deixou passar um momento e
aproximou-se depois da noiva, murmurando-lhe ao ouvido:
— Se for da vontade de Deus que dediques
tua vida a mim conforme as leis de Moisés e de Israel, serás então para mim o
que Raquel foi para Jacó, pois a minha alma anseia ardentemente pela tua.
Maria não disse palavra. José rompeu o
silêncio que sobreviera:
— E se, pela vontade de Deus, me deres
filhos, nós os educaremos para que sejam ricos de saber e de boas ações.
Ao ouvir estas palavras Maria ergueu
lentamente a cabeça e fitou o noivo. Apesar da escuridão que começava a
envolvê-los, José percebeu uma luz misteriosa a brilhar nos olhos da jovem, o
que o surpreendeu. Afastou-se inconscientemente e, sentindo um súbito temor,
perguntou-lhe em voz trêmula:
— O que se passa contigo, Maria? Já não és
a mesma.
— O que se passa comigo? Por quê?
— Não sei, mas... estou com receio de ti,
Maria.
Ela o olhou novamente, e seus lábios esboçaram
um leve sorriso.
— Por que haverias de ter receio de mim, José?
Tu és meu noivo e me conheces há muitos dias.Mas tu mudaste, não ficavas assim
tão triste.
— Não estou triste, José. Ao contrário, o meu
coração está muito alegre, alegre como a cor viva da romã.
— E o Senhor abençoará o fruto de teu ventre
como abençoou a romã.
— Se for da vontade de Deus, o fruto de meu
ventre será consagrado inteiramente a Ele — declarou subitamente com firmeza a
jovem.
Estas palavras deixaram José silencioso. Ele
empalideceu. O que ouvira foi um voto solene que ele não esperava. Não estava
preparado para tal sacrifício – ceder o seu primogênito para o serviço de Deus,
pois foi isso o que julgou entender das palavras dela. Meditou por alguns
instantes, procurou avaliar a importância daquele voto, e sentiu uma amargura
no coração ao pensar no filho ainda por nascer, que já naquele momento ia ficar
privado do que ele, seu pai, pudesse lhe deixar como herança em Israel.
Tornou a olhar o rosto de Maria, esperando
talvez convencê-la a renunciar àquele voto. A escuridão da sala tornara-se mais
densa e fez com que o brilho transcendente dos olhos de Maria assumisse maior
intensidade. José sentiu-se desalentado e, abaixando a cabeça, disse cheio de
humildade:
— Fizeste esse voto, Maria. Vais dedicar
teu filho ao Senhor, da mesma maneira como Hannah o fez com Samuel. Portanto, será
a Deus que ele haverá de pertencer.
Tremera-lhe a voz, o que fez com que Maria
se voltasse vivamente para ele e dissesse, como se quisesse consolá-lo:
— Mas José, tu sabes que tudo que vem de
Deus, a Deus pertence.
Ele, porém, não compreendeu. Fechou os
lábios e guardou silêncio.
Nesse momento a viúva Hannah tornou a
entrar na sala, seguida do sacerdote. Hanina lançou um olhar ferino ao casal de
jovens que estava sentado junto no canto mais escuro da sala e, apontando a
vara na direção deles, agitou-a muitas vezes como se fosse dar uma surra neles.
— É essa a maneira de os noivos se
conduzirem em Israel antes de estarem unidos pelas leis de Moisés?
José saltou do banco, as faces rubras de vergonha.
Maria permaneceu imóvel, os olhos cravados no chão.
— Aqueles que são puros são também puros
em todas as suas ações — respondeu a viúva, procurando amenizar o
constrangimento causado pela repreensão do sacerdote. Afinal, o dia do
casamento já estava próximo.
A figura volumosa do sacerdote virou-se
para ela:
— A alta linhagem da qual descende vossa filha impõe-lhe certa responsabilidade. Um procedimento como esse não condiz com a sua posição — Ao dizer isso, sacudiu a cabeças à maneira de quem tivesse sofrido um desagradável desapontamento, e retirou-se.
(Continua amanhã)
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