Começam os Preparativos
para a
Formalização do Contrato
de Casamento
A festa em casa da viúva Hannah começaria, como de costume, à noite. Os aldeões e artífices de Nazaré não podiam abandonar suas ocupações durante o dia para se entregarem a tais festejos. Eram, em sua maioria, jornaleiros, e somente à noite dispunham de tempo para o lazer.
Ao escurecer, a anfitriã colocou luzes
sobre a mesa – vasos de barro, nos quais tremeluzia a chama da mecha colocada
no azeite. Uma lamparina maior, na qual se queimava o mais fino óleo de oliva,
foi colocada próxima aos lugares de honra destinados aos mais velhos e aos
noivos, a fim de que a sua fragrância lhes fosse agradável. Prendeu-se, no lado
de fora, na parede, uma tocha embebida em piche e, perto, dependurou-se uma
flâmula branca para proclamar a alegre festa que se realizava no interior da
casa, e convidar os estranhos que lá passassem para entrar e participar de
tudo.
Os convidados começaram a chegar depois do
pôr do sol. A maioria vinha com as crianças. Os sábios e os conselheiros da
cidade vestiaqm suas roupas de cerimônia
– mantos pretos semelhantes às togas romanas – e traziam a cabeça coberta como
sinal de sua posição social. Os mais simples vinham de cabeça descoberta e sem
sandália, usando túnicas multicoloridas sem mangas, amarradas à cintura por uma
corda. Os mais favorecidos usavam cintas de linho. Antes de transporem a porta,
lavavam as mãos e os pés com a água dos vasos que ali haviam sido colocados
para esse fim.
Os cabelos e a barba dos ocupavam posições
de honra na cidade reluziam de óleo de oliva, os anéis cintilavam nos dedos.
Pendiam-lhes do pescoço joias de adorno. Eram poucos, porém, os que assim se
apresentavam. Apenas o rabino da cidade, alguns dos filhos de Pinhas e os
sacerdotes chefiados por Hanina ben Safra, o qual viera assistir à cerimônia do
contrato de casamento não obstante sua ojeriza anterior.
Por outro lado, os filhos de Issachar eram
de classe pobre e, mesmo que o fabrico de sandálias fosse um de seus ofícios,
vinham, em sua maioria, descalços. Contudo, haviam untado de azeite o cabelo e
a barba em homenagem ao acontecimento.
Nenhum deixou de trazer um presente. O
pequeno pastor de Reb Elimelech, que precedera ao seu amo, trouxe duas ovelhas
com seus cordeirinhos – uma dádiva à noiva da parte do parente mais próximo do
noivo – a fim de que o casal pudesse formar o seu rebanho. A própria viúva
Hannah presenteou José com um xale de orações, franjado nos quatro cantos, cada
orla consistindo de oito fios, perfazendo um total de 32, que é o valor
numérico da palavra “coração” em hebraico. Somente Cleofas, cunhado de Maria, é
que nada trouxe, pois julgava que, como parente da moça, a sua posição era mais
de recebedor de prendas do que de doador.
Cada convidado, ao entrar na sala em festas,
considerava o seu primeiro dever apresentar-se diante da noiva – a qual se
achava sentada ao lado de José, à cabeceira da mesa – e elogiar-lhe a beleza ao
noivo e aos que ali se achavam reunidos. Era tido como atitude elegante da parte
dos convidados enaltecer a noiva junto ao noivo. Quanto mais elogios fizessem,
tanto mais recompensas em forma de iguarias receberiam.
— Os olhos da noiva são mais belos do que
os da pomba. São de belo tamanho e lavados com leite — começou Reb Tudrus,
chefe dos filhos de Issachar, sorrindo amavelmente através de sua espessa barba
preta, e depositando aos pés de Maria um par de sandálias finamente bordado.
— A beleza é o principal tesouro de uma
noiva — acrescentou Jochanan, o carpinteiro e vizinho da casa de Hannah há
muitos anos, sorrindo alegremente para o noivo, e invejando-lhe a boa sorte,
pois como era um dos filhos de Hanina, podia ter sido um pretendente à mão de
Maria.
Até mesmo o grande Hanina ben Safra parecia ter perdoado tudo. Entrou com aquele costumeiro andar pesado, um manto branco de sacerdote jogado sobre os ombros, os cabelos grisalhos lustrosos, e tirou uma bolsa do cinto, levando-a até perto de um dos olhos como se quisesse verificar o seu conteúdo. Enfiou dentro dois dedos carnudos e tirou várias moedas de prata, deixou cair algumas e, após rápida e silenciosa consideração, achou que duas eram suficientes. Atirou-as sobre uma bandeja que havia perto da cabeceira da mesa e, finalmente, dirigindo-se a José, falou sem ironia:
— Quem acha uma esposa encontra a
felicidade, e foi alcançado pela benevolência do Senhor, disse Salomão, o mais
sábio dos homens (Provérbios 18.22).
E assim, de uma maneira ou de outra, cada
convidado entregava o seu presente e fazia um elogio à noiva, até que o chão
perto dela ficou coberto de utensílios caseiros, adornos, fardos de tecidos, de
lã e de linho, Tudo isso entregue com os votos de felicidades da parte dos doadores.
Chegou por fim o momento de se lavrar o
contrato de casamento, pois todos já se haviam acomodado e voltavam-se agora
para o noivo a fim de ouvi-lo anunciar o valor da contribuição que ia fazer à
família. Viu-se que ele não viera absolutamente desprovido de meios como os
seus oponentes haviam julgado. Para começar, trouxera duzentos dinheiros,
importância essa que as leis de casamento exigiam para que pudesse ceder o nome
de sua família ao nome da esposa, se esta fosse uma donzela. E para surpresa de
todos, José, mui modestamente, colocou diante do rabino uma bolsa de linho
nova.
Para conseguir essa importância, ele havia
vendido a sua parte dos bens paternos. Abriu depois uma pequena sacola e tirou
de dentro um anel de prata, com o qual presenteou Cleofas, o cunhado. Trouxera
para a mãe da noiva uma fina fazenda de lã para vestuário, e para a noiva um cinto
tecido com lã de carneiro, cor de violeta, que se fechava com uma fivela
trabalhada em pura prata, com a figura de um leão em relevo, símbolo heráldico
da casa de Davi. Trouxera também consigo uma meada de finíssimo linho de Sidom
para o traje nupcial da noiva.
Nessa altura, o rabino levantou-se e pediu
ao noivo uma lembrança qualquer. José deu-lhe a sua própria cinta. O rabino,
diante das testemunhas, colocou-a nas mãos da noiva, constituindo isso o
símbolo do rito tradicional para cada acordo ou transação que se concluísse. O
escriba foi então chamado para lavrar as condições do contrato, o qual, depois
de ser conferido pelo rabino, foi carimbado e selado por duas testemunhas.
Quase ao mesmo tempo reuniram as crianças para receberem pãezinhos de mel e
nozes, fixando assim em sua memória – no caso de haver qualquer litígio no
futuro – que no dia daquele noivado, a noiva não era uma viúva, mas uma donzela,
conforme ficara anteriormente demonstrado ao ter ela permanecido sentada em
casa da mãe com os cabelos completamente soltos.
O noivo colocou finalmente um fino véu
sobre a cabeça da noiva, a fim de cobrir-lhe o rosto, e todos os presentes
voltaram-se para ele, dizendo-lhe:
– Seja ela para vós como o foram Raquel e
Lia, as quais construíram a casa de Israel.
Os convidados se deliciaram depois com as boas iguarias, esvaziaram os frascos de vinho e entoaram louvores a Deus até altas horas da noite.
Maria
Tem o Pressentimento de que Algo Diferente Vai Acontecer
Maria não conseguiu dormir após a
cerimônia. Ficou acordada no seu leito de madeira e palha, fitando a escuridão
com os seus grandes olhos negros. Pensou na sua estada em Jerusalém, nos
levitas postados com suas harpas e saltérios nos degraus que conduziam à parte
interna do Templo. Voltaram a ocupar-lhe o pensamento todas aquelas coisas
estranhas que lhe haviam acontecido no período em que ficou na casa de sua
prima. Lembrou-se do que acontecera a Zacarias, da visão que ele tivera. Devia ter
sido isso que o deixara completamente mudor. Veio-lhe à lembrança a figura da
velha Hannah, a profetisa.
Pensou na própria visão que tivera, na
mulher a quem chamavam de mãe Raquel, que lhe dissera para se preparar, sem, no
entanto, parar a seu lado para revelar-lhe o significado de suas palavras.
Toda a vez que se lembrava daquela visão,
pensava no rei Messias e nas profecias de Isaías anunciando Sua vinda. Durante
um breve instante imaginou vê-lo, a Ele, o Messias, andando além da escuridão,
em silêncio. Sem saber como e por quê, sentia-se espiritualmente presa a Ele,
percebia-o bem perto, e sentia Sua luz desconhecida e invisível penetrar em seu
coração.
Não havia uma antiga profecia de que uma
virgem iria conceber e dar à luz um filho? Ela ouvira falar sobre isso, ou
talvez tivesse lido a respeito. Mas o que representava isso para ela? Estava
noiva de José, e logo estaria casada como qualquer outra moça, conforme as leis
de Moisés. Pertencia-lhe agora, fora indicada para cumprir os deveres de uma
esposa, deveres esses de todas as judias, de dar filhos ao esposo e construir o
seu lar em Israel.
Estava, pois, tudo terminado. Seu destino
havia se estabelecido. .
Porém, subitamente sentiu-se invadida por
um espírito de rebeldia. Sua natureza se revoltava contra a sentença que lhe
haviam dado. Pareceu-lhe, em um dado momento, que jamais poderia colocar-se à
disposição para ser a mãe do Messias, como todas as moças israelitas desejavam.
E aqueles sinais apontados para ela, assinalando que ela seria a mãe do
Messias? O que faria com eles?
— Por que guardei silêncio? Por que
enganei a congregação e esse jovem inocente que veio de tão longe para casar
comigo? Devo envergonhar um homem que é melhor do que eu, e que está em paz com
o Senhor?... Vou contar-lhe tudo. Direi a ele que resolvi dedicar a minha vida
ao Senhor, da mesma maneira como Hannah dedicou Samuel, seu único filho, a
Deus. Ele me ouvirá, compreenderá tudo e deixará que eu fique com Deus. O seu
rosto é de quem me compreenderá, pois seus olhos são puros e refletem toda a
sua bondade e humildade. Certamente ele haverá de compreender-me e não me
insultará.
— Mas quem sou eu para julgar-me acima de
todas as outras? Ó Pai Celeste, tende piedade! Afastai de mim minhas ilusões e
minhas palavras orgulhosas. Fazei-me digna de ser uma de vossas mais humildes
criaturas. Sujeitai o meu coração à vossa vontade e aos vossos desígnios, e que
tudo o que acontecer comigo seja conforme a Vossa vontade...
Maria levantou-se no dia seguinte com o espírito
calmo, e entregou-se às suas obrigações diárias. Já não alimentava aquela
orgulhosa ambição de ser a mãe do Messias. Seu único desejo era satisfazer a
vontade de Deus.
O dia estava rompendo. O Sol da manhã ainda
não havia imposto todo o seu domínio sobre o Céu e a Terra. Porém, no
horizonte, as nuvens já haviam adquirido a tonalidade de sangue. Os campos de
Jezrael aqueciam-se com os raios de luz, mas os campos e colinas de Nazaré ainda
não haviam despertado. Estavam cobertos pelo orvalho que cobria suas matas e
bosques. Ainda que o Céu fosse um claro e límpido azul, a Terra ainda repousava
em meio a névoa.
A jovem Maria revolvia a terra de um
canteiro de ervilhas próximo à parede de sua casa, logo abaixo da janela de seu
quarto. Usava uma túnica de lã azul-escuro para proteger-se da umidade. Calçava
sandálias e trazia à volta dos ombros um xale de lã de sua mãe. Sua cabeça estava
descoberta, e as gotas de orvalho que caíam das ramagens espalhavam-se pelas suas
tranças espessas e escuras. Ela curvou-se e contemplou, maravilhada, as delicadas
cores de suas pequeninas plantas, o colorido lilás, salmão, amarelo e branco, e
a penugem das folhas. Segurou delicadamente uma entre os dedos, examinando,
enlevada, os minúsculos detalhes de cada pétala, nas quais havia ainda algumas
gotas de orvalho, à semelhança de lágrimas na face de uma criança.
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