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sábado, 30 de abril de 2022

JOSÉ SE EXPRESSA DIANTE DA CONGREGAÇÃO

 


                                 Toda a congregação desviou seus olhos de José e fixou-os no chão como se o perigo que a noiva estava correndo fosse também o deles. José não respondeu imediatamente. Somente depois de uma expectativa que pareceu eterna é que levantou a cabeça e, fitando em cheio o rabino, disse em voz clara e ressonante:

         – Declaro perante esta sagrada congregação que minha noiva Maria, a filha de Hanan, é casta e sem mácula. Ela é inocente de toda e qualquer culpa, pois o culpado sou eu... Tratai-me agora de acordo com a lei.

         Suas palavras romperam a tensão reinante, seguindo-se-lhe forte reação. Punhos cerrados o ameaçavam de todos os lados. Subia na sala um vozerio eivado de ódio e ouviu-se, dominando aquele tumulto, Cleofas esbravejar, completamente fora de si.

         – Hei de exigir-lhe reparações! Hei de faze-lo indenizar toda a família!

         – O que foi que eu disse? gritou o sacerdote. Por acaso faltavam jovens nesta cidade para que abandonássemos a órfã Maria a este estranho que está fazendo a nossa mais nobre família passar por grande vergonha?

         O rabino impôs mais uma vez silêncio à multidão. Sentia-se aliviado, sabendo que havia afastado uma grande desgraça. Voltou-se para os parentes da noiva e disse:

         – O nosso jovem amigo José ben Jacob acaba de declarar-nos que desposou a noiva na maneira santificada pela Tora e pela lei de Moisés e Israel. Ele não lançou nenhuma vergonha sobre a família e ninguém tem direito de exigir-lhe satisfações. A partir de hoje, Maria, filha de Hana, é sua esposa legal e – virando-se para José – faço votos para que a vossa união seja abençoada com alegria e felicidades.

         O rabino encaminhou-se depois para José que ficara completamente confuso, estendeu-lhe a mão. Por fim, voltou-se para os presentes e concluiu com as seguintes palavras:

         – Povo de Nazaré! Construiu-se um novo lar em Israel! Desejemos a ele uma eterna ventura.

         O seguinte a aproximar-se de José foi Reb Elimelech.

         – Como sabes, José, não recorremos a tal processo em Israel, e eu esperava que a filha de meu irmão merecesse um casamento no altar. Mas com a ajuda de Deus o teu casamento será abençoado e tua esposa te dará muitos filhos e tu lhes proporcionarás uma boa educação.

         O velho retirou-se depois deixando José sozinho na sala do tribunal.

 

*

quarta-feira, 27 de abril de 2022

O RABINO DA CIDADE INTERROGA JOSÉ

                         



         – José ben Jacob, começou o rabino balançando o corpo, como se estivesse rezando, e cofiando os fios brancos e sedosos da barba, chegaram-nos informações que dizem respeito à jovem Maria, da qual ficastes noivo não faz muito tempo. O assunto nos deixou bastante apreensivo e clama por uma explicação... Fez uma pausa, e o movimento de seu magro corpo quase parecia Ter-se perdido nas espessas dobras da túnica. – Pois, mesmo que tais coisas tenham ocorrido no passado – conforme sabemos de casos anteriores que chegaram aos nossos ouvidos – tal não é, porém, o nosso costume na Galiléia. Contudo, o ato a que me refiro somente é permissível se o noivo admitir tê-lo praticado para fins de casamento. Portanto, peço-vos agora, José ben Jacob, dizerdes a este tribunal se desposastes a vossa noiva, a referida Maria, por meio de coabitação e se sois o pai da criança que ela traz em seu ventre.

         José não respondeu. Seu rosto tornou-se lívido. Fechou os olhos e deixou cair a cabeça sobre o peito, tomado de desespero e vergonha. Não viu os olhares rancorosos de Cleofas, o cunhado, e do sacerdote Hanina, os quais ocupavam os bancos laterais reservados à família da noiva. não reparara nas feições pálidas e transtornadas de Reb Elimelech, cujas rugas pareciam ter-se tornado mais profundas naqueles últimos dias. Esquecera-se da presença do rabino e de seus assistentes e do chefe da sinagoga, o venerável Reb Jochanan, um dos filhos de Issachar, membro do tribunal. Nem mesmo ouvia o murmúrio abafado da congregação, a qual ocupava os bancos do fundo e se comprimia na entrada da sala. Tampouco via os rostos das mulheres e das jovens que o observavam através das janelas. Parecia esmagado ao peso daquele golpe inesperado. O seu próprio corpo deu de repente a impressão de que diminuíra, como se lhe tivesse esvaído o sangue. E ele continuou encerrado no seu silêncio.

         Toda aquela gente ali reunida no tribunal juntou-se ao seu silêncio. Todos como que prenderam a respiração para ouvir o que o jovem forasteiro diria contra a acusação que lhe faziam. José, porém, persistia em sua mudez.

         – O silêncio eqüivale a uma confissão, declarou por fim Reb Elimelech,   ansioso por dar paradeiro à dolorosa tensão. Mas o rabino insistiu:

         – Esta questão é demasiado grave e não podemos abandoná-la tão somente por causa de uma confissão pelo silêncio, declarou. José ben Jacob, peço-vos, pela Segunda vez, em nome deste justo tribunal, que declareis perante nós se consumastes ou não o casamento pela coabitação, ou se estais inocente nessa questão e não sois o pai da criança que a vossa noiva Maria traz em suas entranhas.

         As palavras do rabino ecoaram lugubremente, tornando o silêncio reinante mais profundo ainda. Todos os presentes tiveram a consciência viva da importância que elas representavam. O medo apoderou-se do espirito de todos. Era como se o ar parado da sala do tribunal tivesse sido agitado pelas asas de um anjo fatal. Todos sabiam o que aconteceria se José negasse a sua participação no caso, esperavam com profunda ansiedade a sua resposta.

         Um gemido prolongado rompeu o silêncio. Foi entre soluços que José gritou:

         – Ó Pai Celeste! Estaríeis assistindo a essa humilhação de uma inocente filha de Israel?

         – O que foi que ele disse? O que foi? ouviu-se cochichar entre os espectadores.

         – Explicai o que quereis dizer, José ben Jacob, ordenou o rabino.

         – O que quero dizer é o seguinte: Qual foi o homem ou a mulher que lançou essa infâmia sobre a minha noiva?

         O rabino e seus companheiros juízes ficaram aturdidos.

         Foi como se a acusação do jovem os visasse diretamente. Passado um instante, os parentes da noiva ergueram-se tumultuosamente. Cleofas parecia ter recebido uma aguilhoada e sacudiu um punho ameaçador para o acusado. Atrás dele via-se o sacerdote Hanina que gesticulava freneticamente. Da porta de entrada vinha um vozerio confuso que aumentava de intensidade. O rabino levantou a mão impondo silêncio e recomeçou em voz trêmula:

         – José ben Jacob, Deus é testemunha de que não partiu deste tribunal a acusação que pesa sobre vossa noiva. antes de vos chamar para comparecerdes neste tribunal, tínhamos recebido informações que nos haviam deixado bastante inquietos. Não nos deixamos, porém, guiar apenas por elas, esforçamo-nos muito por investigar o caso, ouvimos testemunhas de integridade impecável – muitas matronas e jovens que ouviram a vossa noiva, a jovem Maria, confessar que ia ser mãe e invocar o Nome Sagrado e agradecer a Deus pela graça que Ele lhe dera. Ouviram-na dizer isso não apenas uma ou duas vezes, mas sim muitas vezes. Foi no poço, onde ia buscar água todas as manhãs e todas as tardes, que ela confiou esse fato a suas amigas. E ainda protelamos o julgamento, pois quisemos ouvir mulheres versadas nessas questões, as quais nos declararam que não havia dúvida alguma de que vossa noiva estava em estado de gestação. Não vemos motivo para duvidar do depoimento dessas testemunhas. Pedimo-vos, pois, pela terceira vez, que declareis publicamente, perante a congregação aqui reunida, se é fruto vosso a criança que vossa noiva Maria traz em seu ventre. Se, livrai-nos Deus, algum outro homem for o pai da criança, sabereis então a desgraça que pairará sobre vossa noiva, sobre a casa de sua genitora e sobre todos nós nesta sagrada congregação. José ben Jacob, tirai a mancha que cobre o nome de uma filha de David! Aplacai a inquietação que reina nos corações desta comunidade de Israel! Confessai!

domingo, 24 de abril de 2022

AS MULHERES DE NAZARÉ ESCANDALIZAM-SE COM MARIA

 

AQUELA OCORRÊNCIA no poço tornou-se pouco tempo o tema de conversação em toda a cidade. Tanto as jovens como as matronas aguçavam a vista em direção a escandalosa virgem, procurando confirmação das suspeitas que as suas palavras haviam despertado. Faziam-no em qualquer lugar em que ela estivesse, fosse no mercado ou no poço, algumas com timidez, outras com ar de conhecedoras.

         – Bobas que sois! A barriga dela já está volumosa e ainda estais procurando descobrir qualquer sinal! escarneceu uma viúva que tinha a pretensão de conhecer algo do ofício de parteira.

         – O novo carpinteiro gosta de furtar os figos antes de estarem maduros, declarou a outra.

         Não demorou muito para que os boatos chegassem aos ouvidos das autoridades, e o rabino, juntamente com os juízes do tribunal, decidiram que o caso exigia uma investigação oficial.

         Acontecia que, sob o ponto de vista estritamente legal, o ato de coabitação entre noivo e noiva não constituía crime. De fato, era uma das três maneiras reconhecidas cara concluir um contrato de casamento. No entanto, deve-se acrescentar que a sua legalidade não amenizava de forma alguma a ação indecorosa, pois tais relações com uma noiva eram consideradas violação brutal do decoro e uma nódoa que ficaria para sempre na família da noiva. todavia, o ato em si não era suscetível de punição contanto que o noivo confessasse ser o autor e declarasse publicamente que escolhera tal método como o meio de consumar o casamento. No entanto, se ele negasse a sua participação no caso, a culpa de infidelidade caía toda sobre a noiva, a qual seria então estigmatizada como adúltera, e, para o crime de adultério, as leis de Moisés admitiam apenas uma punição – morte a pedradas. Com tal ameaça a pairar-lhes no espirito, as autoridades não sentiam disposição para mortificar uma filha de Israel, acusando-a de um crime capital. Decidiram, por conseguinte, interrogar primeiro o noivo. O caso ficaria encerrado imediatamente, se ele confessasse o fato.

         Como se poderia esperar, José ignorava completamente os boatos que agitavam a cidade, não obstante a nuvem de tristeza que pairava sobre os seus parentes. Cochichavam sempre a seu redor. Ficavam com as fisionomias carregadas toda a vez que ele aparecia, e mesmo assim José mal percebia a transformação e, certamente, estava longe de suspeitar a verdadeira causa de tudo aquilo. Achava-se demasiadamente absorvido com os preparativos de seu próximo casamento e economizava os seus magros ganhos para poder comprar presentes para a família da noiva e o vinho que deveria fornecer para a festa. Sabia o conceito em que um homem era tido pelo número de copos que se bebia nessa ocasião.

         José estava tão embebido nos preparativos e a eles se dedicava com tal ardor, que nem deu pela mudança na atitude de seu parente e amigo, Reb Elimelech, o qual começara a afastar-se dele, quase deixando mesmo de responder às suas saudações. Na família da noiva, as coisas eram ainda piores; seus membros murmuravam com azedume contra o jovem intruso que lhes destruíra a paz. A própria mãe de Maria refugiara-se num canto da casa numa noite em que José fora visitar a noiva.

         Foi na sinagoga que José viu que todo o mundo o evitava. Os homens não deram atenção às suas saudações e evitavam passar perto do banco em que se achava. Viu o olhar de zombaria e de desprezo que lhe atiravam. Ficou completamente surpreendido com aquele tratamento, pois ignorava tivesse cometido qualquer falta. Teria, ao mesmo tempo, rejeitado veementemente a idéia de que aquela hostilidade geral que começara a pesar-lhe terrivelmente no espirito tivesse qualquer relação com a noiva, principalmente com a sua castidade. Teria imposto o silêncio a qualquer homem que ousasse ferir a honra de uma filha de Israel. Permaneceu assim, na ignorância dos fatos, pois não encontrava justificativa para o tratamento cruel que lhe estavam dispensando.

         Foi, portanto, com genuína e profunda surpresa que recebeu uma intimação para comparecer perante o tribunal de Nazaré.

 

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Os Comentários em Nazaré Sobre Maria

 

Os boatos, porém, espalharam-se como um incêndio numa floresta. Surgiu uma nova profetisa em Israel, dizia-se, e não é outra senão a filha da viúva Hannah e do falecido carpinteiro Hanan. A mesma Maria que há poucos dias ficou noiva do recém-chegado José. Circulavam histórias de visões que a jovem tinha. Dizia-se que um espírito se havia apoderado dela e que era esse espírito – e quem poderia saber qual era – que falava por seu intermédio toda a vez que abria a boca. Seria o espírito de Deus ou – Deus nos livre – o de Satã?

As moças da cidade foram as primeiras a ouvir, certa vez, sobre o espírito que dominava Maria.

A jovem continuara a ir todas as manhãs tirar água do poço da comunidade. Hannah deixava-a ir, muito contra sua vontade, embora fosse muito natural que as mães mandassem as próprias filhas fazer tal serviço.

Acontecia que o poço era o ponto de reunião das mulheres, o centro de onde se irradiavam todas as notícias, mexericos e escândalos. Era ali, às primeiras horas da manhã, que as mulheres trocavam, entre cochichos e gargalhadas, as suas confidências e contavam umas às outras os acontecimentos da véspera, o que se dizia recentemente de determinado homem ou mulher. É desnecessário dizer que a conduta de Maria constituía rica fonte de mexericos para as mulheres fofoqueiras. Todas as manhãs suas vizinhas corriam para o poço e, com voz ainda arquejante, contavam às companheiras o que tinham ouvido a jovem cantar no telhado da casa da mãe — que ela havia sido escolhida, entre todas as moças de Israel, para ser a mãe do Messias de Israel.

Numa daquelas manhãs, quando Maria aproximava-se com a bilha sobre a cabeça, observou um grupo compacto de mulheres junto ao poço cochichando entre si. Os olhos delas, todos sem exceção, estavam fitos em Maria, de modo que não havia dúvida quanto ao assunto da conversa. Quando Maria chegou à boca do poço, todas se afastaram para dar-lhe passagem, embora não fosse ainda a sua vez. Mas assim que ela encheu a bilha e virou-se para voltar para casa, viu-se cercada pelas mulheres, que lhe bloquearam o caminho. Uma delas, o rosto queimado de sol, e com uma argolinha de latão pendente do nariz – a quem chamavam de “Avihu de Má Língua”, postou-se à sua frente, de mãos à cintura, e perguntou com ironia:      — Então foste tu a escolhida para trazer a esperança aos judeus e ser a mãe do Filho de Deus?

— Não é que ela parece agora uma matriarca, tal e qual Raquel e Lia? — zombou outra.

— Fui escolhida por Deus para participar do plano de salvação para Israel — respondeu Maria, como se a pergunta lhe tivesse sido feita de boa-fé.

— Como é que sabes? — perguntaram-lhe novamente. Se ainda não te deitaste com um homem, como poderás saber que essas coisas te irão acontecer? Talvez Deus feche o teu ventre a sete chaves.

— Quem sabe? Um fruto roubado é mais saboroso —, acrescentou a velha Tamar, mulher que há muito tempo tinha sido abandonada pelo marido. Concluiu suas palavras com uma gargalhada que pôs a mostra as ruínas de sua boca.

Maria passeou o olhar em volta. As mulheres não arredaram o pé do círculo que tinham feito. Viam-se no rosto de todas elas o ódio e a malícia. A jovem sentiu um calafrio subir-lhe à espinha e, largando a bilha, caiu de joelhos e ergueu as mãos. Não disse palavra, mas o tremor dos seus lábios e a palidez que lhe cobriu o rosto assustaram as mulheres, as quais se puseram a correr, quase caindo umas sobre as outras. Pararam à distância e continuaram a observar, com os olhos arregalados, a jovem, e ouviram, assustadas, as palavras que saíam dos lábios dela, como o cântico de um salmo que tivesse sido pronunciado pela primeira vez em toda a terra de Israel:

— Deus reservou coisas extraordinárias para mim. Como uma águia Ele desceu até ao meu quarto; como um pássaro real carregou-me em suas asas até às nuvens. Não foi entre os cedros do Líbano nem entre as montanhas da Judeia que construiu o Seu ninho, porém entre as tenras varas do canavial da Galileia. E foi na humilde casa de meu pai que elegeu a mais insignificante de Suas servas para conceber em seu ventre a Esperança de Israel. Aquele que será concebido em meu ventre trará o auxílio e a salvação, os quais não conhecerão fronteiras nem deixarão de estender-se por toda a Terra e pelos Céus, por toda a eternidade!

— Ouviram o que ela disse? Ouviram? — gritou uma das mulheres em voz estridente e histérica. — Ela mesma disse que traz em seu ventre a Esperança de Israel!

Então as mulheres saíram em desabalada correira rumo às suas casas, para espalhar a espantosa notícia de que uma virgem em Nazaré afirmara que seria a mãe do Messias!   

(Continua amanhã)

SHLOMO YITZHAK

França (1040-1105)

(Transcrito em português contemporâneo, adaptado, revisado e enriquecido por Jefferson Magno Costa)

    

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Os Habitantes de Nazaré Notam a Transformação de Maria


      

     Não levou muito tempo para que todos em Nazaré começassem a comentar a transformação que se operava em Maria. Viam muitas vezes a jovem dirigir-se para lugares sossegados, demonstrando inexplicável predileção pela solidão, em vez de procurar divertir-se com as amigas e usufruir da companhia do noivo. Todavia, a sua melancolia não era das que costumam irritar o observador. Ao contrário, parecia irradiar notas melodiosas de uma canção, as quais ressoavam nos corações das pessoas, enchendo-as de estranha alegria.

      Todos se sentiam mais felizes em sua presença. Porém, em outros momentos, tinha-se a impressão de que a sua companhia causava certa inquietude. Todos achavam que era preferível não olhar em seus olhos. Até mesmo a mãe se sentia estranhamente perturbada quando a via sair do quarto pela manhã. Nessas ocasiões, parecia que um véu de luz envolvia a jovem, e o brilho que refletia em seus olhos parecia ter algo de celestial.

      Vendo-a assim uma manhã, perguntou-lhe a mãe, com a voz trêmula, dominando a emoção:

      — Maria, minha filha, tu me pareces muito estranha. Por amor de Deus, diz-me o que foi que aconteceu?

      — Não sei o que a senhora quer dizer com isso, mamãe.

— Como não sabes, Maria? Dás a impressão de que um anjo está andando à tua volta. Até parece que lhe ouço o bater das asas.

— Deus deixou que Sua graça caísse sobre mim, mamãe — respondeu Maria com simplicidade e sem constrangimento.

— Nós todos temos a graça de Deus, assim penso — retrucou Hannah, lançando um olhar penetrante para a filha.

— Eu sei, mamãe, mas é que o nosso Deus me escolheu para trazer conforto e esperança aos oprimidos. Fui escolhida por ele para ser a mãe daquele que resgatará Israel.

— Maria, tuas palavras me causam aflição. Alguma coisa se passou contigo. Não sei o que é, mas uma coisa te peço: Não deixeis essas palavras caírem nos ouvidos dos estranhos. As más línguas falariam mal de ti.

 Que mal poderiam falar de mim, se o Criador me protege? Ele está ao meu redor como um cinturão de fogo. A quem devo temer se Ele me escolheu para conceber a esperança de Israel?

Hannah empalideceu de pavor.

— Rogo a Deus que não me envergonhes, Maria disse ela, e que Ele faça que tudo corra bem.

Tomou depois a filha pela mão e conduziu-a para o seu quarto, acrescentando:

— Fica aí entre essas paredes. Receio que apareças para os outros e comeces a falar sobre isso.

Mas todos os habitantes de Nazaré vieram a saber disso. Muitas vezes, em plena luz do dia, Maria costumava ajoelhar-se em oração quando trabalhava na sua horta ou jardim. Outras vezes, à noite, permanecia ereta no telhado da casa, sozinha, contemplando as estrelas, ou caía de joelhos, as mãos levantadas para o céu, e entoava os salmos de Davi ou uns versículos que ela mesma compunha, e cuja razão de ser ninguém compreendia. Não eram versículos de uma profetisa, mais pareciam palavras de adoração de uma sacerdotisa. Cantava alegres hinos de louvor e magnificats ao Altíssimo pelos milagres que nela se haviam operado. Seus cânticos referiam-se às promessas cumpridas, a obrigações antigas assumidas para com os Patriarcas, à aproximação do dia da salvação, da grande redenção.

— Que se abram as portas da glória para o Santíssimo de Israel! — cantava ela. — Os cativos e os pobres anseiam pela Sua vinda! Os cânticos de toda a Terra se elevam para Deus!...

A viúva Hannah costumava despertá-la daqueles deslumbramentos. Erguia-a, ajudava-a a descer a escada e conduzia-a para o interior da casa. Não queria que o estado d’alma da filha alimentasse os mexericos do povo.

(Continua amanhã)

SHLOMO YITZHAK

França (1040-1105)

(Transcrito em português contemporâneo, adaptado, revisado e enriquecido por Jefferson Magno Costa)

 

terça-feira, 19 de abril de 2022

A NOVA VIDA DO CASAL

 CAPÍTULO V

      FUGIA ÀS BOAS NORMAS observadas pelos judeus os noivos mostrarem-se juntos mais vezes do que o necessário. O bom-tom ditava, até mesmo para os casados, certa restrição à frequência de seus aparecimentos em público. José instalara-se, por isso, na casa de seu parente Reb Elimelech, onde iria passar os meses que ainda o separavam de seu casamento. Ia durante o dia às carpintarias da cidade, para as quais trabalhava como jornaleiro. À tarde, terminado o serviço, visitava a noiva e ajudava-a na horta ou no jardim, ou então preparava a sua oficina de carpinteiro na casa da viúva onde iria viver depois do casamento. Havia, pois, poucos momentos para uma comunhão mais íntima com a noiva.

      Somente aos sábados e dias de festas é que se quebrava a regra. José passava o dia todo na casa de Maria e, às vezes, ficava alguns ligeiros momentos a sós com a jovem, justamente quando saíam para cuidar das plantações – quando Maria lhe mostrava, cheia de orgulho, as suas hortaliças, as umbelas brancas e amarelas dos endros, ou quando, por breves instantes, observavam o pequeno rebanho de carneiros que, à volta do pátio, aguardavam o momento de comer no cocho. Disse-lhe José, numa dessas ocasiões, sem ousar olhar para ela:

      — Se for do agrado de Deus, poderemos construir juntos a nossa casa, e tu, Maria, haverás de participar de tudo com que Deus me favorecer. Tua boca ditará as ordens em minha casa e tua mão é que a sustentará, pois a verdade é que Deus me deu, como esposa, uma mulher de valor.

      Maria sentiu as faces arderem. Abaixou a cabeça e não respondeu.

      Uma noite, depois de passadas as celebrações do sábado, estava ele sentado a seu lado na casa da viúva. A luz bruxuleante de uma lamparina mal os alcançava. A viúva Hannah se achava na despensa, na extremidade oposta da sala, arrumando uns queijos e frutas secas que fora buscar na parte superior da casa para vendê-los no dia seguinte na grande cidade de Sepphoris.

      Os preparativos para o casamento da filha exigiam muitos recursos. Tinha-se que reservar grande quantidade de vinhos, embora se contasse, para isso, com o auxílio do noivo. Mas o que dizer do óleo, do azeite, das frutas secas, dos pães e da carne de galinha que se comia em um casamento com tão grande número de convidados? Seria uma carga pesada para a viúva, razão por que começara a preparar as provisões. Para isto, vendia as sobras de frutas, hortaliças e lacticínios nos mercados das cidades vizinhas.

      Seus problemas não eram apenas de ordem financeira. Mesmo descendendo de um sacerdote, nunca pudera entender a engrenagem da lei no tocante ao pagamento do dízimo. Não sabia se tinha ou não de pagar o dízimo dos levitas sobre as hortelãs e as uvas, se precisava pagá-lo também sobre as alcachofras e os preciosos aspargos. Perguntava a si mesma como poderia guardar tudo aquilo na cabeça, se muitos frutos e hortaliças davam em estações diferentes. E assim aguardava a vinda de Hanina ben Safra, o sacerdote da cidade. Pelas marcas anteriores, ele poderia dizer-lhe quais os produtos ainda sujeitos ao pagamento do dízimo.

      Ele não demorou muito tempo a chegar. Logo ela ouviu os seus passos pesados e viu, através das fendas da ombreira da porta, a luz de sua lâmpada. Hanina bateu impacientemente com a vara na soleira, pois dispunha de pouco tempo. Tinha de visitar naquela mesma noite muitos outros aldeões nazarenos a fim de dizer-lhes quais de suas colheitas podiam ser levadas com segurança ao mercado, e quais as que estavam ainda para ser tributadas. Hannah apressou-se a recebê-lo, deixando José e a filha a sós.

      José deixou passar um momento e aproximou-se depois da noiva, murmurando-lhe ao ouvido:

      — Se for da vontade de Deus que dediques tua vida a mim conforme as leis de Moisés e de Israel, serás então para mim o que Raquel foi para Jacó, pois a minha alma anseia ardentemente pela tua.

      Maria não disse palavra. José rompeu o silêncio que sobreviera:

      — E se, pela vontade de Deus, me deres filhos, nós os educaremos para que sejam ricos de saber e de boas ações.

      Ao ouvir estas palavras Maria ergueu lentamente a cabeça e fitou o noivo. Apesar da escuridão que começava a envolvê-los, José percebeu uma luz misteriosa a brilhar nos olhos da jovem, o que o surpreendeu. Afastou-se inconscientemente e, sentindo um súbito temor, perguntou-lhe em voz trêmula:

      — O que se passa contigo, Maria? Já não és a mesma.

      — O que se passa comigo? Por quê?

      — Não sei, mas... estou com receio de ti, Maria.

Ela o olhou novamente, e seus lábios esboçaram um leve sorriso.

— Por que haverias de ter receio de mim, José? Tu és meu noivo e me conheces há muitos dias.Mas tu mudaste, não ficavas assim tão triste.

— Não estou triste, José. Ao contrário, o meu coração está muito alegre, alegre como a cor viva da romã.

— E o Senhor abençoará o fruto de teu ventre como abençoou a romã.

— Se for da vontade de Deus, o fruto de meu ventre será consagrado inteiramente a Ele — declarou subitamente com firmeza a jovem.

Estas palavras deixaram José silencioso. Ele empalideceu. O que ouvira foi um voto solene que ele não esperava. Não estava preparado para tal sacrifício – ceder o seu primogênito para o serviço de Deus, pois foi isso o que julgou entender das palavras dela. Meditou por alguns instantes, procurou avaliar a importância daquele voto, e sentiu uma amargura no coração ao pensar no filho ainda por nascer, que já naquele momento ia ficar privado do que ele, seu pai, pudesse lhe deixar como herança em Israel.

Tornou a olhar o rosto de Maria, esperando talvez convencê-la a renunciar àquele voto. A escuridão da sala tornara-se mais densa e fez com que o brilho transcendente dos olhos de Maria assumisse maior intensidade. José sentiu-se desalentado e, abaixando a cabeça, disse cheio de humildade: 

      — Fizeste esse voto, Maria. Vais dedicar teu filho ao Senhor, da mesma maneira como Hannah o fez com Samuel. Portanto, será a Deus que ele haverá de pertencer.

      Tremera-lhe a voz, o que fez com que Maria se voltasse vivamente para ele e dissesse, como se quisesse consolá-lo:

      — Mas José, tu sabes que tudo que vem de Deus, a Deus pertence.

      Ele, porém, não compreendeu. Fechou os lábios e guardou silêncio.

      Nesse momento a viúva Hannah tornou a entrar na sala, seguida do sacerdote. Hanina lançou um olhar ferino ao casal de jovens que estava sentado junto no canto mais escuro da sala e, apontando a vara na direção deles, agitou-a muitas vezes como se fosse dar uma surra neles.

      — É essa a maneira de os noivos se conduzirem em Israel antes de estarem unidos pelas leis de Moisés?

      José saltou do banco, as faces rubras de vergonha. Maria permaneceu imóvel, os olhos cravados no chão.

      — Aqueles que são puros são também puros em todas as suas ações — respondeu a viúva, procurando amenizar o constrangimento causado pela repreensão do sacerdote. Afinal, o dia do casamento já estava próximo.   

      A figura volumosa do sacerdote virou-se para ela:

      — A alta linhagem da qual descende vossa filha impõe-lhe certa responsabilidade. Um procedimento como esse não condiz com a sua posição — Ao dizer isso, sacudiu a cabeças à maneira de quem tivesse sofrido um desagradável desapontamento, e retirou-se.

(Continua amanhã)

SHLOMO YITZHAK

França (1040-1105)

(Transcrito em português contemporâneo, adaptado, revisado e enriquecido por Jefferson Magno Costa)

segunda-feira, 18 de abril de 2022

A Saudação do Anjo

 

      — A paz seja contigo, filha de Hannah, pois o Senhor é contigo!

      Foi somente ao ouvir o anjo saudá-la numa voz humana que Maria percebeu mais uma vez a sua própria natureza terrena. Compreendeu que realmente estava diante de um ser celestial. Sentiu-se novamente atemorizada. Tornou a ser uma jovem humilde e trêmula, o coração a pulsar-lhe fortemente, a agitar no peito o xale desbotado da mãe. Maria abaixou o olhar, como se quisesse desaparecer no chão. Seus cabelos grudaram-se à sua testa e ao pescoço úmidos. Seu rosto se tornou pálido, suas mãos começaram a tremer. O anjo falou outra vez. Sua voz soou estranhamente distante:

      — Não temas, Maria, pois caíste na graça de Deus! E atenta no que vou te dizer: irás conceber e dar à luz um filho, a quem darás o nome de Jesus. Ele será um grande homem. O chamarão o Filho do Altíssimo, e o Senhor lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará sobre a casa de Davi para todo o sempre, e o seu reinado será eterno.

      Maria, com muito medo e trêmula, ficou com os olhos postos no chão enquanto ouvia em silêncio as palavras do anjo. Assim que ele acabou de falar, ergueu a cabeça e fitou-o novamente com tristeza, perguntando-lhe depois com suavidade:

      — Como poderá ser isso se nunca dormi com aquele que será meu esposo?

      E o anjo respondeu:

      — O Espírito Santo descerá sobre ti, e o poder do Altíssimo te protegerá. Portanto, o ser sagrado que sairá do teu ventre será chamado Filho de Deus e Salvador da Humanidade.

      Maria permaneceu silenciosa durante algum tempo. Fechou os olhos. As cores, porém, haviam voltado ao seu rosto, dando-lhe a sensação de um calor intenso e o brilho de um fogo sagrado. Quando os abriu novamente, viu que o anjo não estava mais no seu quarto.

 (Continua amanhã)

SHLOMO YITZHAK

França (1040-1105)

(Transcrito em português contemporâneo, adaptado, revisado e enriquecido por Jefferson Magno Costa)

domingo, 17 de abril de 2022

Um Anjo Aparece a Maria

  

      — Ó Senhor, como são maravilhosas as obras de Tuas mãos! Quanta riqueza Tu depositaste sobre a Terra! — pensou.

      Um leve tremor sacudiu-lhe subitamente o corpo. Alguma coisa diferente estava acontecendo com ela, pois seu coração começou a bater aceleradamente no peito. Ergueu a cabeça e olhou ao redor. Parecia que havia descido um pesado silêncio sobre todas as coisas vivas. Era como se o tempo e o mundo tivessem parado. As folhas, as flores, os ramos, os arbustos, as casas, as árvores, o gado que pastava no campo – tudo se imobilizara. Parecia que suas vidas tivessem sido suspensas num indefinível instante.

      Todas as criaturas de Deus aguardavam, em plena luz daquele dia, a Sua palavra. Maria esperou, sob forte tensão, alguma coisa que não devia estar longe, algo que devia acontecer a qualquer momento. Sentiu, inesperadamente, o temor misturar-se com a alegria que tomara conta de sua alma.

      Olhou mais uma vez em volta e seu olhar pousou sobre a parede de seu quarto, onde, logo abaixo do teto, uma abertura servia de janela. Algo atraiu seu olhar para dentro do quarto. Não ouviu voz alguma e nada viu. Mas ela sabia que havia alguém lá dentro, alguém que lhe pedia para entrar, acenando-lhe com mão invisível. Maria abaixou a cabeça e, abandonando o jardim, entrou na casa.

      O silêncio que pairava em seu quarto era ainda mais profundo. Porém, todas as coisas estavam em seus lugares. Tudo estava como ela havia deixado: a esteira de palha sobre o banco de madeira, a roca com a fina meada de linho que recebera de presente do noivo; num canto, a caixa de madeira com o seu livro de Salmos e os pergaminhos das Sagradas Escrituras. De um cabide de madeira pendia o seu vestido de lã azul, juntamente com o seu véu de linho branco que usara no pátio do Templo.

      Maria deteve-se no meio do quarto, sem saber o que fazer naquele silêncio pesado, profundo. Somente o seu coração é que continuava a pulsar fortemente. Na sua testa brilhavam frias gotas de suor, enquanto o seu rosto ardia em brasas, como se estivesse com febre. Havia certamente alguém em seu quarto. Não podia vê-lo; apenas sentia o peso e a extensão de sua presença.     Subitamente uma luz que não vinha do Sol penetrou pela pequena janela e pousou sobre o tapete junto ao seu leito onde ela costumava ajoelhar-se para orar. Imediatamente, Maria percebeu a sombra silenciosa de grandes asas sobre sua cabeça. O medo aumentou, e com ele sua alegria. Maria cobriu o rosto com as mãos e caiu de joelhos. Nenhuma palavra saiu de seus lábios; apenas o coração acelerou os batimentos.

      Quando ergueu novamente os olhos, viu que não estava mais sozinha. Não se surpreendeu ao ver que havia um anjo no seu quarto. Destacavam-se naquele ser celestial suas grandes e poderosas asas. Tinha as feições de um jovem, talvez de um sacerdote ainda moço, parecidas com as que Maria tinha visto nos pátios do Templo, porém mais sérias, mais radiantes e intocáveis. Ele a contemplava com um sorriso nos lábios, com grandes olhos muito atentos e cheios de ternura.

      A jovem e o anjo se fitaram durante alguns instantes. O olhar de Maria  refletia tristeza. O do anjo, piedade. Maria cerrou fortemente os lábios. Somente seus olhos exprimiam o sofrimento de toda a humanidade. Permaneceu imóvel diante do anjo, observando-o, apesar das persistentes marteladas que sentia em seu peito. As veias do seu pescoço intumesceram-se-lhe, acompanhando o ritmo do coração.

      O olhar de Maria lutou com o do anjo, da mesma maneira como Jacó lutou com um ser celestial em Peniel. E foi ele, o anjo, que abaixou finalmente a cabeça sobre as asas, incapaz de sustentar o sofrimento mortal que se lia no olhar da jovem. Depois, numa voz baixinha que parecia ter nascido de um murmúrio na extremidade longínqua dos espaços celestiais, mas adquirindo ao mesmo tempo força e volume até soar num timbre humano, o anjo disse-lhe:

(Continua amanhã)

SHLOMO YITZHAK

França (1040-1105)

(Transcrito em português contemporâneo, adaptado, revisado e enriquecido por Jefferson Magno Costa)

sábado, 16 de abril de 2022

Começam os Preparativos para o casamento

 

Começam os Preparativos para a

Formalização do Contrato de Casamento

      A festa em casa da viúva Hannah começaria, como de costume, à noite. Os aldeões e artífices de Nazaré não podiam abandonar suas ocupações durante o dia para se entregarem a tais festejos. Eram, em sua maioria, jornaleiros, e somente à noite dispunham de tempo para o lazer.

      Ao escurecer, a anfitriã colocou luzes sobre a mesa – vasos de barro, nos quais tremeluzia a chama da mecha colocada no azeite. Uma lamparina maior, na qual se queimava o mais fino óleo de oliva, foi colocada próxima aos lugares de honra destinados aos mais velhos e aos noivos, a fim de que a sua fragrância lhes fosse agradável. Prendeu-se, no lado de fora, na parede, uma tocha embebida em piche e, perto, dependurou-se uma flâmula branca para proclamar a alegre festa que se realizava no interior da casa, e convidar os estranhos que lá passassem para entrar e participar de tudo.

     Os convidados começaram a chegar depois do pôr do sol. A maioria vinha com as crianças. Os sábios e os conselheiros da cidade vestiaqm suas roupas  de cerimônia – mantos pretos semelhantes às togas romanas – e traziam a cabeça coberta como sinal de sua posição social. Os mais simples vinham de cabeça descoberta e sem sandália, usando túnicas multicoloridas sem mangas, amarradas à cintura por uma corda. Os mais favorecidos usavam cintas de linho. Antes de transporem a porta, lavavam as mãos e os pés com a água dos vasos que ali haviam sido colocados para esse fim.

      Os cabelos e a barba dos ocupavam posições de honra na cidade reluziam de óleo de oliva, os anéis cintilavam nos dedos. Pendiam-lhes do pescoço joias de adorno. Eram poucos, porém, os que assim se apresentavam. Apenas o rabino da cidade, alguns dos filhos de Pinhas e os sacerdotes chefiados por Hanina ben Safra, o qual viera assistir à cerimônia do contrato de casamento não obstante sua ojeriza anterior.

      Por outro lado, os filhos de Issachar eram de classe pobre e, mesmo que o fabrico de sandálias fosse um de seus ofícios, vinham, em sua maioria, descalços. Contudo, haviam untado de azeite o cabelo e a barba em homenagem ao acontecimento.

      Nenhum deixou de trazer um presente. O pequeno pastor de Reb Elimelech, que precedera ao seu amo, trouxe duas ovelhas com seus cordeirinhos – uma dádiva à noiva da parte do parente mais próximo do noivo – a fim de que o casal pudesse formar o seu rebanho. A própria viúva Hannah presenteou José com um xale de orações, franjado nos quatro cantos, cada orla consistindo de oito fios, perfazendo um total de 32, que é o valor numérico da palavra “coração” em hebraico. Somente Cleofas, cunhado de Maria, é que nada trouxe, pois julgava que, como parente da moça, a sua posição era mais de recebedor de prendas do que de doador.

      Cada convidado, ao entrar na sala em festas, considerava o seu primeiro dever apresentar-se diante da noiva – a qual se achava sentada ao lado de José, à cabeceira da mesa – e elogiar-lhe a beleza ao noivo e aos que ali se achavam reunidos. Era tido como atitude elegante da parte dos convidados enaltecer a noiva junto ao noivo. Quanto mais elogios fizessem, tanto mais recompensas em forma de iguarias receberiam.

      — Os olhos da noiva são mais belos do que os da pomba. São de belo tamanho e lavados com leite — começou Reb Tudrus, chefe dos filhos de Issachar, sorrindo amavelmente através de sua espessa barba preta, e depositando aos pés de Maria um par de sandálias finamente bordado.

      — A beleza é o principal tesouro de uma noiva — acrescentou Jochanan, o carpinteiro e vizinho da casa de Hannah há muitos anos, sorrindo alegremente para o noivo, e invejando-lhe a boa sorte, pois como era um dos filhos de Hanina, podia ter sido um pretendente à mão de Maria.

      Até mesmo o grande Hanina ben Safra parecia ter perdoado tudo. Entrou com aquele costumeiro andar pesado, um manto branco de sacerdote jogado sobre os ombros, os cabelos grisalhos lustrosos, e tirou uma bolsa do cinto, levando-a até perto de um dos olhos como se quisesse verificar o seu conteúdo. Enfiou dentro dois dedos carnudos e tirou várias moedas de prata, deixou cair algumas e, após rápida e silenciosa consideração, achou que duas eram suficientes. Atirou-as sobre uma bandeja que havia perto da cabeceira da mesa e, finalmente, dirigindo-se a José, falou sem ironia:            

      — Quem acha uma esposa encontra a felicidade, e foi alcançado pela benevolência do Senhor, disse Salomão, o mais sábio dos homens (Provérbios 18.22).

      E assim, de uma maneira ou de outra, cada convidado entregava o seu presente e fazia um elogio à noiva, até que o chão perto dela ficou coberto de utensílios caseiros, adornos, fardos de tecidos, de lã e de linho, Tudo isso entregue com os votos de felicidades da parte dos doadores.

      Chegou por fim o momento de se lavrar o contrato de casamento, pois todos já se haviam acomodado e voltavam-se agora para o noivo a fim de ouvi-lo anunciar o valor da contribuição que ia fazer à família. Viu-se que ele não viera absolutamente desprovido de meios como os seus oponentes haviam julgado. Para começar, trouxera duzentos dinheiros, importância essa que as leis de casamento exigiam para que pudesse ceder o nome de sua família ao nome da esposa, se esta fosse uma donzela. E para surpresa de todos, José, mui modestamente, colocou diante do rabino uma bolsa de linho nova.

      Para conseguir essa importância, ele havia vendido a sua parte dos bens paternos. Abriu depois uma pequena sacola e tirou de dentro um anel de prata, com o qual presenteou Cleofas, o cunhado. Trouxera para a mãe da noiva uma fina fazenda de lã para vestuário, e para a noiva um cinto tecido com lã de carneiro, cor de violeta, que se fechava com uma fivela trabalhada em pura prata, com a figura de um leão em relevo, símbolo heráldico da casa de Davi. Trouxera também consigo uma meada de finíssimo linho de Sidom para o traje nupcial da noiva.

      Nessa altura, o rabino levantou-se e pediu ao noivo uma lembrança qualquer. José deu-lhe a sua própria cinta. O rabino, diante das testemunhas, colocou-a nas mãos da noiva, constituindo isso o símbolo do rito tradicional para cada acordo ou transação que se concluísse. O escriba foi então chamado para lavrar as condições do contrato, o qual, depois de ser conferido pelo rabino, foi carimbado e selado por duas testemunhas. Quase ao mesmo tempo reuniram as crianças para receberem pãezinhos de mel e nozes, fixando assim em sua memória – no caso de haver qualquer litígio no futuro – que no dia daquele noivado, a noiva não era uma viúva, mas uma donzela, conforme ficara anteriormente demonstrado ao ter ela permanecido sentada em casa da mãe com os cabelos completamente soltos.

      O noivo colocou finalmente um fino véu sobre a cabeça da noiva, a fim de cobrir-lhe o rosto, e todos os presentes voltaram-se para ele, dizendo-lhe:

      – Seja ela para vós como o foram Raquel e Lia, as quais construíram a casa de Israel.

      Os convidados se deliciaram depois com as boas iguarias, esvaziaram os frascos de vinho e entoaram louvores a Deus até altas horas da noite. 

Maria Tem o Pressentimento de que Algo Diferente Vai Acontecer

      Maria não conseguiu dormir após a cerimônia. Ficou acordada no seu leito de madeira e palha, fitando a escuridão com os seus grandes olhos negros. Pensou na sua estada em Jerusalém, nos levitas postados com suas harpas e saltérios nos degraus que conduziam à parte interna do Templo. Voltaram a ocupar-lhe o pensamento todas aquelas coisas estranhas que lhe haviam acontecido no período em que ficou na casa de sua prima. Lembrou-se do que acontecera a Zacarias, da visão que ele tivera. Devia ter sido isso que o deixara completamente mudor. Veio-lhe à lembrança a figura da velha Hannah, a profetisa.

      Pensou na própria visão que tivera, na mulher a quem chamavam de mãe Raquel, que lhe dissera para se preparar, sem, no entanto, parar a seu lado para revelar-lhe o significado de suas palavras.

      Toda a vez que se lembrava daquela visão, pensava no rei Messias e nas profecias de Isaías anunciando Sua vinda. Durante um breve instante imaginou vê-lo, a Ele, o Messias, andando além da escuridão, em silêncio. Sem saber como e por quê, sentia-se espiritualmente presa a Ele, percebia-o bem perto, e sentia Sua luz desconhecida e invisível penetrar em seu coração.

      Não havia uma antiga profecia de que uma virgem iria conceber e dar à luz um filho? Ela ouvira falar sobre isso, ou talvez tivesse lido a respeito. Mas o que representava isso para ela? Estava noiva de José, e logo estaria casada como qualquer outra moça, conforme as leis de Moisés. Pertencia-lhe agora, fora indicada para cumprir os deveres de uma esposa, deveres esses de todas as judias, de dar filhos ao esposo e construir o seu lar em Israel.

      Estava, pois, tudo terminado. Seu destino havia se estabelecido. .

      Porém, subitamente sentiu-se invadida por um espírito de rebeldia. Sua natureza se revoltava contra a sentença que lhe haviam dado. Pareceu-lhe, em um dado momento, que jamais poderia colocar-se à disposição para ser a mãe do Messias, como todas as moças israelitas desejavam. E aqueles sinais apontados para ela, assinalando que ela seria a mãe do Messias? O que faria com eles?

      — Por que guardei silêncio? Por que enganei a congregação e esse jovem inocente que veio de tão longe para casar comigo? Devo envergonhar um homem que é melhor do que eu, e que está em paz com o Senhor?... Vou contar-lhe tudo. Direi a ele que resolvi dedicar a minha vida ao Senhor, da mesma maneira como Hannah dedicou Samuel, seu único filho, a Deus. Ele me ouvirá, compreenderá tudo e deixará que eu fique com Deus. O seu rosto é de quem me compreenderá, pois seus olhos são puros e refletem toda a sua bondade e humildade. Certamente ele haverá de compreender-me e não me insultará.

      — Mas quem sou eu para julgar-me acima de todas as outras? Ó Pai Celeste, tende piedade! Afastai de mim minhas ilusões e minhas palavras orgulhosas. Fazei-me digna de ser uma de vossas mais humildes criaturas. Sujeitai o meu coração à vossa vontade e aos vossos desígnios, e que tudo o que acontecer comigo seja conforme a Vossa vontade...

      Maria levantou-se no dia seguinte com o espírito calmo, e entregou-se às suas obrigações diárias. Já não alimentava aquela orgulhosa ambição de ser a mãe do Messias. Seu único desejo era satisfazer a vontade de Deus.

      O dia estava rompendo. O Sol da manhã ainda não havia imposto todo o seu domínio sobre o Céu e a Terra. Porém, no horizonte, as nuvens já haviam adquirido a tonalidade de sangue. Os campos de Jezrael aqueciam-se com os raios de luz, mas os campos e colinas de Nazaré ainda não haviam despertado. Estavam cobertos pelo orvalho que cobria suas matas e bosques. Ainda que o Céu fosse um claro e límpido azul, a Terra ainda repousava em meio a névoa.

      A jovem Maria revolvia a terra de um canteiro de ervilhas próximo à parede de sua casa, logo abaixo da janela de seu quarto. Usava uma túnica de lã azul-escuro para proteger-se da umidade. Calçava sandálias e trazia à volta dos ombros um xale de lã de sua mãe. Sua cabeça estava descoberta, e as gotas de orvalho que caíam das ramagens espalhavam-se pelas suas tranças espessas e escuras. Ela curvou-se e contemplou, maravilhada, as delicadas cores de suas pequeninas plantas, o colorido lilás, salmão, amarelo e branco, e a penugem das folhas. Segurou delicadamente uma entre os dedos, examinando, enlevada, os minúsculos detalhes de cada pétala, nas quais havia ainda algumas gotas de orvalho, à semelhança de lágrimas na face de uma criança.

 (Continua amanhã)

SHLOMO YITZHAK

França (1040-1105)

(Transcrito em português contemporâneo, adaptado, revisado e enriquecido por Jefferson Magno Costa)

sexta-feira, 15 de abril de 2022

PREPARAÇÃO DO CASAMENTO ENTRE JOSÉ E MARIA DENTRO DAS TRADIÇÕES DE ISRAEL

 

CAPÍTULO   IV 

O CONTRATO DE CASAMENTO ENTRE JOSÉ E MARIA DENTRO DAS TRADIÇÕES DE ISRAEL 


      A TRADIÇÃO EM ISRAEL exigia que o contrato de casamento de uma virgem fosse lavrado numa quarta-feira, e o de uma viúva numa quinta-feira. Isso no meado do mês, com a lua cheia e brilhante a fim de se ter boa sorte. Escolhera-se, portanto, a quarta-feira mais próxima, no mês de Adar, para o noivado do jovem José ben Jacob e da virgem Maria.

      Adar era o mês da felicidade. “Israel colhe alegrias quando Adar surge”, dizia o ditado. Aquele mês trazia consigo a encantadora festa de Purim e, com ela, as grandes celebrações da Páscoa.

      Trazia também a estação mais bela do ano, pois nessa ocasião, todos os campos nas vizinhanças de Nazaré se cobriam de papoulas, os ramos das videiras vergavam sob o peso de seus pequeninos cachos de uvas, as romãs estavam em plena florescência, e o fértil vale de Jezrael oferecia um admirável conjunto de cores com suas plantações de milho, jardins, vinhedos e bosques de oliveiras. A Galileia, durante o mês de Adar, parecia o próprio jardim de Deus, onde se erguiam as “barracas de Jacó” e se viam as pequeninas cidades e aldeias judaicas adornando a paisagem até ao longínquo monte Sinai. Nas encostas daquele monte, milhares de ciprestes, qual oceano de um verde vivíssimo, se estendiam até ao cume árido que recebera a maldição de Davi.

      A viúva Hannah pegou uma das grandes vasilhas de barro que se achavam à porta da entrada da casa – as mesmas vasilhas que guardavam no inverno o suco de uva, e que durante as restantes estações do ano serviam para nelas se fazerem as abluções – e levou-a para a câmara da filha, depois de enchê-la de água fresca da cisterna. Ajudou a noiva a banhar-se. Não demorou muito a aparecerem as amigas de Maria, as quais a vestiram de linho branco, e fizeram-lhe uma coroa com papoulas e folhas de oliveira para adornar-lhe a cabeça. Cobriram depois as paredes e o teto com flores colhidas nos jardins, e campos e colocaram galhos de oliveiras ao lado dos bancos que estavam enfileirados junto às paredes, à espera dos convidados.

      Vieram depois as matronas da cidade para auxiliar a viúva a preparar as iguarias. Amassaram o pão e cozeram-no, ao ar livre, em fogões improvisados. Fizeram bolinhos de mel para as crianças, as quais receberiam também nozes e frutas secas. Encheram os pratos de mel. Retirou-se da despensa toda a provisão de azeitonas pretas que lá haviam sido conservadas em sal e vinagre para que não se estragassem. Espalharam pelas travessas de barro fatias de tortas de figo. Odres de precioso vinho de tâmaras e de uva surgiram de seus esconderijos para honrar os convidados e saciar sua sede.

      Os vizinhos não vieram de mãos vazias. Haviam colhido em suas hortas legumes frescos que satisfaziam tanto quanto a carne, como, por exemplo, alcachofra, que se podia comer cozida e crua, e outros legumes que estimulavam o apetite e aqueciam o sangue, como cebolas e endros. Alguns faziam os comensais estalar a língua, como a erva-doce e o aspargo real, cujo gosto se reflete nos olhos, e que seriam servidos somente às pessoas delicadas e às crianças. Para atender aos demais convidados, havia sobre a mesa muitas jarras de leite e coalhada, queijo curado e, aqui e acolá, blocos de manteiga com mel.

      Não se serviria carne. Os habitantes de Nazaré eram demasiado pobres para se dar ao luxo de matar um cordeiro ou um cabrito, até mesmo em ocasiões tão raras como o noivado de uma filha. Além disso, o uso da carne era circunscrito por complexas regras de sacrifício e ritos que se tinham de ser observados por ocasião da matança. A carne animal era uma iguaria reservada para aqueles que moravam em Jerusalém, onde se podia encontrá-la em abundância.

      Os moradores do campo raramente viam carne de uma Páscoa a outra quando viajavam para a Cidade Santa a fim de sacrificarem o cordeiro pascal. O mesmo se passava com o peixe. Esse alimento não era comum na casa dos pobres. Os pequenos peixes pescados no mar da Galileia e salgados nos portos das cidades de Cafarnaum e Sidom, jamais chegavam a lugares tão afastados como Nazaré. Podia-se encontrá-los apenas nos grandes centros, tais como Sephoris, Naim e Caná. Os moradores de Nazaré tinham, pois, de contentar-se com verduras e leite e seus derivados, a que se acrescentavam nos sábados e dias de festas ovos ou mesmo aves – isto é, se se encontrasse um entendido nas regras de matança.

 (Continua amanhã)

SHLOMO YITZHAK

França (1040-1105)

(Transcrito em português contemporâneo, adaptado, revisado e enriquecido por Jefferson Magno Costa)

quinta-feira, 14 de abril de 2022

O Sacerdote Zacarias Fica Mudo

 

     Mais ou menos naquela hora acontecera um estranho incidente com o sacerdote Zacarias, em cuja casa ela residia em Jerusalém. O velho atendia ao ofício sacerdotal na ordem de sua divisão, enquanto a multidão de peregrinos o aguardava no pátio externo. Deixara, porém, de aparecer no santuário ao terminar a sua tarefa, a qual consistia em queimar incenso no altar. O povo surpreendeu-se com a sua desusada demora, e foi-se tornando casa vez mais impaciente. Foi então que viram o velho Zacarias sair cambaleando do Templo, amparado por dois sacerdotes. Souberam que ele ficara mudo. Diziam que tivera uma visão, mas ninguém sabia o que ele tinha visto.

      Naquele mesmo dia a figura de Raquel apareceu a Maria. De pé, no meio de uma multidão de mulheres que oravam, Maria ouviu a sua voz dizer-lhe:

      — Volta, minha filha, volta para a casa de tua mãe em Nazaré, pois, fica sabendo, chegou a tua hora.

 (Continua amanhã)

SHLOMO YITZHAK

França (1040-1105)

(Transcrito em português contemporâneo, adaptado, revisado e enriquecido por Jefferson Magno Costa)

quarta-feira, 13 de abril de 2022

O desejo de Maria

 


      Desde muito nova, Maria, na casa de Hanan, seu pai, alimentava em segredo o desejo, como muitas outras moças judias, de que o Rei Messias que estava sendo esperado fosse concebido em seu ventre. A imagem do Filho do Homem, que os profetas descreveram tão vivamente, enraizara-se no seu coração. Renunciou, por isso, às alegrias e diversões que a vida do Templo podia oferecer a uma jovem de sua posição. Era em vão que as amigas insistiam para que ela as acompanhasse em seus passeios pelos pomares de Jerusalém. Após o encerramento do ofício anual do Dia da Expiação, depois que o sumo sacerdote havia sido carregado com grande pompa para sua residência, era costume as moças de Jerusalém reunirem-se nos pomares adjacentes, para onde também seguiam os rapazes da cidade e os visitantes do interior que haviam feito a peregrinação.

      Cada um dos rapazes escolhia para si uma moça, entre todas elas, que, em fileiras sucessivas, gritavam para os jovens: “Não pensem em nossa riqueza nem na nossa beleza. Considerem apenas as famílias das quais descendemos”.

      Maria não participava dessas reuniões entre os jovens. Sozinha, ela imaginava como deveria ser o Messias, e o que representaria ser a mãe dele. Inesperadamente, surpreendia-se com a presunção de seus pensamentos. Envergonhada e contrita, pedia perdão a Deus por tão alta pretensão. Quem era sua família e quem era ela para achar que seria a escolhida, entre tantas pretendentes, para embalar em um berço o Ungido de Israel?

Era verdade que o Messias seria um descendente da Casa de Davi, mas outros ramos mais importantes da família tinham mais direito a essa glória do que uma jovem nazarena esquecida e órfã de pai. E ela ainda nem era casada. E talvez o Messias já tivesse nascido. Talvez estivesse até mesmo andando entre eles, sem ser reconhecido, ou, mais provavelmente, sentado entre os sábios e os pregadores da Lei, os rabinos que disseminavam a Palavra de Deus entre os adultos e as crianças de Israel, as pessoas que habitavam a Cidade Santa e caminhavam em busca de algum sinal da Presença do Senhor.

      A casa de seu falecido pai ficava na humilde cidade de Nazaré, tão infecunda da Palavra de Deus como uma pedra plantada em um campo de trigo. Quem era, pois, ela para ser mãe do Rei Messias? Ela não passava de um broto ressequido de uma velha árvore entre os cedros do Líbano. Naqueles momentos de grande abatimento, a jovem dirigia suas orações a Deus, implorava para que Ele lhe concedesse a graça da humildade e livrasse sua alma de uma falsa aspiração.

      Mas o sonho que ela procurava afastar de si tornava a voltar. Via no âmago de sua alma a imagem do Messias, alimentava-a com lágrimas durante as compridas noites em Jerusalém, e ansiava poder contemplá-lo um dia com seus olhos. Em outras ocasiões, ajoelhando-se no Pátio das Mulheres no Templo, ela curvava a cabeça até o chão, não com o intuito de orar para obter uma graça especial, mas somente para aliviar o peso de seu coração. Esquecendo-se do lugar em que se encontrava, ou do rigor da cerimônia, cantava com os salmistas: “Como suspira a corça pelas correntes das águas,

assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma. A minha alma tem sede de Deus,

do Deus vivo; quando irei e me verei perante a face de Deus?” (Salmos 42.1,2).

      Toda vez que Maria se levantava do chão, depois de um daqueles momentos adorando a Deus, seus olhos brilhavam admiravelmente, enquanto seu rosto adquiria uma palidez intensa. Algum visitante que, por acaso, passava perto, desviava-se do seu caminho, achando que ela era uma das mulheres histéricas que costumavam perambular pelos pátios do Templo.

      Certa ocasião uma velha profetisa, famosa entre as mulheres de Jerusalém, aproximou-se de Maria enquanto esta se achava mergulhada em um daqueles momentos de adoração. A mulher era uma viúva decrépita que perambulava nas alas permitidas às mulheres dentro do Templo. Podia manter-se em jejum durante semanas. Seu corpo parecia um feixe de varas metido em um saco amarrotado. Do rosto só era possível ver os olhos enterrados em duas covas profundas. Contavam-se muitas histórias a seu respeito. Todos tinham o máximo respeito por ela.

      Há alguns dias a velha profetisa observava Maria no Pátio das Mulheres. Certa vez, apontando para Maria o seu dedo esquelético e torto, disse, com sua voz esganiçada, para todas as mulheres ouvirem:

      — Marquem bem o rosto desta moça. Ela é uma filha da Casa de Davi, e de seu ventre sairá o Redentor de Israel.

      Maria ouviu essas palavras e assustou-se. Corou, envergonhada, e voltou correndo para a sua roca a fim de continuar tecendo nas oficinas do Templo.

 (Continua amanhã)

SHLOMO YITZHAK

França (1040-1105)

(Transcrito em português contemporâneo, adaptado, revisado e enriquecido por Jefferson Magno Costa)